Como a França moldou o Brasil
Apesar do fracasso em ocupar o território da antiga colônia portuguesa, os franceses exerceram uma influência decisiva na formação brasileira
Laurentino Gomes | 29/06/2009 07h26
Este é o Ano da França no Brasil. De 21 de abril até novembro, brasileiros de
15 cidades poderão ver o que os franceses têm de melhor. A lista inclui
exposições de arte, concertos musicais, espetáculos de dança, teatro e cinema,
debates e celebrações. É parte de um projeto ambicioso de intercâmbio, que
começou em 2005, comemorado como o Ano do Brasil na França, com o objetivo de
mostrar as novidades da cultura dos dois países.
Essa história é bem mais antiga do que se imagina. Envolve uma relação de confronto e sedução de parte a parte, que acabaria por moldar de forma decisiva a identidade brasileira. Nos bistrôs e cafés parisienses, a música brasileira é onipresente. Os franceses adoram o samba, o carnaval, a literatura e o cinema brasileiros. O escritor Paulo Coelho é mais celebridade nas ruas de Paris que no Rio de Janeiro. Mas a França já era obcecada pelo Brasil antes mesmo da chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia. A recíproca se provaria verdadeira ao longo dos cinco séculos seguintes. Atualmente, os brasileiros fazem negócios com os Estados Unidos, mas cultuam a gastronomia, a moda, a arte e os prazeres da vida franceses.
No período colonial, o Brasil deixou de ser francês por pouco. Foram os franceses que precipitaram a decisão do rei dom João III (1502-1557) de criar, em 1534, o sistema de capitanias hereditárias, o primeiro esforço de povoamento do Brasil. Nas primeiras décadas do século 16, franceses exploravam pau-brasil no litoral do Nordeste como se fossem donos do território. Há evidências de que já conheciam a costa brasileira bem antes de 1500. Um deles, Jean de Cousin, teria tentado se estabelecer na Amazônia em 1488.
A guerra entre França e Portugal pela posse do Brasil durou mais de dois séculos. O primeiro confronto de que se tem notícia aconteceu em novembro de 1529, quando a nau La Pellérine invadiu a feitoria do rio Igaraçu, em Pernambuco, onde os portugueses tinham uma pequena fortaleza. Os franceses foram expulsos em 1532 pelo comandante Pero Lopes de Sousa (1497-1539). Meio século mais tarde, em 1550, Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) ocupou o Rio de Janeiro por 12 anos, até ser derrotado por Mem de Sá (1500-1572). Em 1612, outra tentativa de ocupação, dessa vez no Maranhão, reconquistado após dois anos por Jerônimo de Albuquerque (1510-1584). No começo do século 18, haveria ainda mais duas investidas de corsários franceses contra o Rio. A última ocorreu em 12 de setembro de 1711. Ao amanhecer, encobertas pelo denso nevoeiro, 18 embarcações comandadas por René Duguay-Trouin (1673-1736) tomaram a cidade. Trouin foi embora em troca de um grande resgate pelos bens que havia saqueado.
Marcas culturais
Cessada a luta pela ocupação territorial, a influência francesa no Brasil se daria no campo das artes, dos costumes e das ideias. As consequências seriam profundas e duradouras. Seu marco foi a transferência da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Ao chegar ao Brasil, dom João VI (1767-1826) iniciou um acelerado período de transformações. O esforço não foi apenas administrativo. Enquanto mandava abrir estradas, construir fábricas e organizar a estrutura de governo, dom João também se dedicava ao que o historiador Jurandir Malerba chamou de "empreendimentos civilizatórios". Nesse caso, a meta era promover as artes e a cultura e tentar infundir algum traço de refinamento e bom gosto nos hábitos atrasados da colônia.
A maior dessas iniciativas foi a contratação, em Paris, da famosa Missão Artística Francesa. Chefiada por Joaquim Lebreton (1760-1819), secretário perpétuo da seção de belas-artes do Instituto de França, a missão chegou ao Brasil em 1816 e era composta por alguns dos mais renomados artistas da época, incluindo o pintor Jean-Baptiste Debret (1768-1848), Auguste Taunay, escultor (1791-1687), e Grandjean de Montigny (1776-1850), arquiteto.
Oficialmente, o objetivo da missão francesa era a criação de uma academia de artes e ciências. O plano nunca saiu do papel, mas alguns historiadores consideram a chegada da missão o início efetivo das artes no Brasil. Na época da corte, a influência francesa era marcante no Rio de Janeiro. As lojas estavam repletas de novidades que chegavam de Paris. Incluíam vestidos e chapéus da última moda, perfumes, água-de-colônia, luvas, espelhos, relógios, tabaco, livros e uma infinidade de mercadorias até então proibidas e ignoradas na antiga colônia.
Mas foi no campo das ideias que os franceses mais ajudaram a transformar o Brasil. Elas estavam por trás da Inconfidência Mineira, da Revolta dos Alfaiates na Bahia, da Revolução Pernambucana de 1817, da Confederação do Equador, em 1824, e de inúmeros outros movimentos de rebelião. Nos Autos de Devassa da Inconfidência foi encontrada uma coleção dos enciclopedistas francesas na casa de um dos conspiradores. Isso num tempo em que a circulação dessas obras era reprimida. O movimento da Independência, em 1822, foi tramado, em boa parte, dentro das Lojas Maçônicas, que tinham seu berço na França.
Em resumo: às vésperas de sua independência, o Brasil dormia com o autoritário e conservador Portugal, mas sonhava mesmo era com a charmosa e libertária França.
Saiba mais
LIVROS
Capítulos da História Colonial, Capistrano de Abreu, Civilização Brasileira, 1976
Descreve a sociedade brasileira em formação.
Brasil 5 Séculos, Hernâni Donato, Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes, 2000
Um passeio pela história do Brasil até os dias atuais.
A Corte no Exílio, Jurandir Malerba, Companhia das Letras, 2000
Relata o encontro dos nobres com os comerciantes locais.
Versalhes Tropical, Kirsten Schultz, Civilização Brasileira, 2008
Analisa o impacto da mudança da corte para o Brasil.
Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), Ronaldo Vainfas (org.), Objetiva, 2000
Descreve os hábitos públicos e privados do Brasil Colônia.
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/como-franca-moldou-brasil-480705.shtml
Essa história é bem mais antiga do que se imagina. Envolve uma relação de confronto e sedução de parte a parte, que acabaria por moldar de forma decisiva a identidade brasileira. Nos bistrôs e cafés parisienses, a música brasileira é onipresente. Os franceses adoram o samba, o carnaval, a literatura e o cinema brasileiros. O escritor Paulo Coelho é mais celebridade nas ruas de Paris que no Rio de Janeiro. Mas a França já era obcecada pelo Brasil antes mesmo da chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia. A recíproca se provaria verdadeira ao longo dos cinco séculos seguintes. Atualmente, os brasileiros fazem negócios com os Estados Unidos, mas cultuam a gastronomia, a moda, a arte e os prazeres da vida franceses.
No período colonial, o Brasil deixou de ser francês por pouco. Foram os franceses que precipitaram a decisão do rei dom João III (1502-1557) de criar, em 1534, o sistema de capitanias hereditárias, o primeiro esforço de povoamento do Brasil. Nas primeiras décadas do século 16, franceses exploravam pau-brasil no litoral do Nordeste como se fossem donos do território. Há evidências de que já conheciam a costa brasileira bem antes de 1500. Um deles, Jean de Cousin, teria tentado se estabelecer na Amazônia em 1488.
A guerra entre França e Portugal pela posse do Brasil durou mais de dois séculos. O primeiro confronto de que se tem notícia aconteceu em novembro de 1529, quando a nau La Pellérine invadiu a feitoria do rio Igaraçu, em Pernambuco, onde os portugueses tinham uma pequena fortaleza. Os franceses foram expulsos em 1532 pelo comandante Pero Lopes de Sousa (1497-1539). Meio século mais tarde, em 1550, Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) ocupou o Rio de Janeiro por 12 anos, até ser derrotado por Mem de Sá (1500-1572). Em 1612, outra tentativa de ocupação, dessa vez no Maranhão, reconquistado após dois anos por Jerônimo de Albuquerque (1510-1584). No começo do século 18, haveria ainda mais duas investidas de corsários franceses contra o Rio. A última ocorreu em 12 de setembro de 1711. Ao amanhecer, encobertas pelo denso nevoeiro, 18 embarcações comandadas por René Duguay-Trouin (1673-1736) tomaram a cidade. Trouin foi embora em troca de um grande resgate pelos bens que havia saqueado.
Marcas culturais
Cessada a luta pela ocupação territorial, a influência francesa no Brasil se daria no campo das artes, dos costumes e das ideias. As consequências seriam profundas e duradouras. Seu marco foi a transferência da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Ao chegar ao Brasil, dom João VI (1767-1826) iniciou um acelerado período de transformações. O esforço não foi apenas administrativo. Enquanto mandava abrir estradas, construir fábricas e organizar a estrutura de governo, dom João também se dedicava ao que o historiador Jurandir Malerba chamou de "empreendimentos civilizatórios". Nesse caso, a meta era promover as artes e a cultura e tentar infundir algum traço de refinamento e bom gosto nos hábitos atrasados da colônia.
A maior dessas iniciativas foi a contratação, em Paris, da famosa Missão Artística Francesa. Chefiada por Joaquim Lebreton (1760-1819), secretário perpétuo da seção de belas-artes do Instituto de França, a missão chegou ao Brasil em 1816 e era composta por alguns dos mais renomados artistas da época, incluindo o pintor Jean-Baptiste Debret (1768-1848), Auguste Taunay, escultor (1791-1687), e Grandjean de Montigny (1776-1850), arquiteto.
Oficialmente, o objetivo da missão francesa era a criação de uma academia de artes e ciências. O plano nunca saiu do papel, mas alguns historiadores consideram a chegada da missão o início efetivo das artes no Brasil. Na época da corte, a influência francesa era marcante no Rio de Janeiro. As lojas estavam repletas de novidades que chegavam de Paris. Incluíam vestidos e chapéus da última moda, perfumes, água-de-colônia, luvas, espelhos, relógios, tabaco, livros e uma infinidade de mercadorias até então proibidas e ignoradas na antiga colônia.
Mas foi no campo das ideias que os franceses mais ajudaram a transformar o Brasil. Elas estavam por trás da Inconfidência Mineira, da Revolta dos Alfaiates na Bahia, da Revolução Pernambucana de 1817, da Confederação do Equador, em 1824, e de inúmeros outros movimentos de rebelião. Nos Autos de Devassa da Inconfidência foi encontrada uma coleção dos enciclopedistas francesas na casa de um dos conspiradores. Isso num tempo em que a circulação dessas obras era reprimida. O movimento da Independência, em 1822, foi tramado, em boa parte, dentro das Lojas Maçônicas, que tinham seu berço na França.
Em resumo: às vésperas de sua independência, o Brasil dormia com o autoritário e conservador Portugal, mas sonhava mesmo era com a charmosa e libertária França.
Saiba mais
LIVROS
Capítulos da História Colonial, Capistrano de Abreu, Civilização Brasileira, 1976
Descreve a sociedade brasileira em formação.
Brasil 5 Séculos, Hernâni Donato, Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes, 2000
Um passeio pela história do Brasil até os dias atuais.
A Corte no Exílio, Jurandir Malerba, Companhia das Letras, 2000
Relata o encontro dos nobres com os comerciantes locais.
Versalhes Tropical, Kirsten Schultz, Civilização Brasileira, 2008
Analisa o impacto da mudança da corte para o Brasil.
Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), Ronaldo Vainfas (org.), Objetiva, 2000
Descreve os hábitos públicos e privados do Brasil Colônia.
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/como-franca-moldou-brasil-480705.shtml
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